Como uma lembrança tão distante da minha realidade atual pode me incomodar tanto assim? Era uma besteira incentivada pelos velhos, coisa de criança que quer agradar, meu avô era sócio de algum grupo de filatelia e para a velharada, eu era uma espécie de mascote, ridículo eu sei, mas na época isso me dava tanto prazer, eu era um garoto inteligente segundo eles, acredito que diziam isso porque ao contrário da maioria dos netos que riam dessa besteira, eu adorava aquela porcaria tanto quanto eles, então quando me chamavam de "inteligente" por conta disso era uma forma de lamberem os próprios sacos.
Enquanto caminho soturnamente pela parte de trás de um clube de vadias amputadas indo "fazer" um cafetão maldito, vejo a minha imagem refletida em uma poça de imundície, um metro e noventa e cinco, uma montanha negra de músculos, careca e com a cara cheia de cicatrizes - e uma herpes mal curada nos lábios.
Eu suspiro e penso no Dom Pedro Segundo estampando o selo que era o meu preferido, lembro da minha avó preparando um sanduíche de mortadela tanto calor, tanto amor. Penso no jovem colombiano que matei na semana passada por ter chamado a filha gostosa e vadia do meu chefe de "Puta", isso depois da putinha ter dado um tapa na irmã mais nova do garoto só por que a colombianinha teria chamado a atenção de um namorado dela. Antes matar um merda deste não me dava nem coceira, mas estou ficando muito mole, não tiro aqueles olhos puxado da minha memória, no momento em que quebrei o maxilar daquele garoto eu era a mais perfeita imagem da injustiça.
Abro a porta. Minha fama ajuda um pouco. Dos quatro vigias, três correm para os fundos, só sobra um garoto ruivo e magrelo. Ele me encara, xinga minha mãe e me da um soco. Enquanto caminho para a segunda porta o corpo do garoto cai com o pescoço torcido e nariz apontando para as costas, mais um idiota que eu tenho de matar pra me manter boiando nessa latrina imunda na qual vivo.
Abro a porta, vejo uma garota de lábio leporino chupando o desgraçado, ele está de costas para porta, deve achar que sou um dos capangas, me manda falar logo o que eu quero. Fico quieto. Ele se vira, me olha e levanta apressado falando palavras desnecessárias. A vadia passa por mim encolhida, ligeira e curiosa como uma ratazana fugindo da inundação, por um instante olho no fundo dos seus olhos e imagino o que aquela garota, irmã do colombiano vai ter de fazer pra sustentar a família, linda daquele jeito.
O desgraçado no fundo da sala não para de falar, o problema é que fui pago pra machucar muito, antes de matar, não fosse por isso ele já estaria cheirando a própria bunda. Começo a bater, depois dos primeiros socos ele já não fala mais nada, continuo batendo quando vejo em cima da sua mesa uma coisa que me chama atenção. Nesses tempos de computadores e internet o maldito estava escrevendo uma carta, e ao lado da folha vejo dois selos ainda não usados, em ambos à mesma estampa um Ipê Cor de Rosa.
Deixo-o no chão. Leio a carta, está em espanhol, não é muito fácil entender. Ele conta para a irmã que é um empresário de sucesso no Brasil, pergunta dos sobrinhos e diz que quer visitá-los em breve. Olho para o chão, vejo um homem que ganha a vida vendendo bocetas de garotas amputadas, na carta só vejo um irmão preocupado, enviando dinheiro para cuidar dos sobrinhos. Fecho a carta ponho o selo, antes de sair dou lhe um pisão no pescoço, são cinco horas da manhã e eu não sei a que horas o correio abre.
Maia.